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O tempo das paixões tristes e esperança



É muito raro ter um livro de pesquisa sociológica com um título tão oportuno e tão adequado ao seu conteúdo. Quando vi pensei que seria um romance. Mas, como não poderia ser diferente em se tratando de um estudo de François Dubet, este livro é uma fina reflexão sobre as forças sociais que organizam a sociedade contemporânea. Não apenas no hemisfério norte. Na maioria dos países encontramos sinais da contemporaneidade e correção desta análise.


Um detalhe importante, principalmente para nós brasileiros, mergulhados num abismo, um cenário aterrador de incompetência, descaso e morte. O livro foi publicado originalmente em 2018, antes da explosão da pandemia. Portanto, a tristeza diz respeito aos modos de vida social que ganham espaço nos últimos anos/décadas. A pandemia tornou ainda mais dolorosa e mais evidente a situação de perda quase total das conexões e trocas entre os indivíduos que produziriam a solidariedade ou coesão social.


O avanço da sociedade, das formas de pensar e agir, as tecnologias, os diversos movimentos sociais, tudo isso refez as condições do chamado contrato social e nos tornamos ainda mais individualistas, individualizados. Parece não haver mais “classes sociais”: apenas um grupo de biliardários, vivendo na estratosfera, e bilhões de indivíduos amontoados e separados por diferenças infinitamente multiplicáveis: etnia, nação, gênero, raça, religião, posição política, opção sexual, idade, cor, qualidades pessoais, formatos familiares etc. São as ‘desigualdades múltiplas’ sobre as quais já conseguimos produzir políticas públicas para atender casos singulares. Mas não fomos ainda capazes de refazer as formas de solidariedade, os nexos sociais que nos juntam em classes ou grupos, em nações, em sociedades. Estamos perdidos numa infinidade de movimentos identitários que só multiplicam as diferenças sem produzir qualquer vínculo ou aproximação, sem produzir qualquer coletividade. A multiplicação das diferenças também faz aumentar os atritos, os conflitos, e, mais ainda, os ódios recíprocos. E, claro, o ressentimento.


No contexto das ‘desigualdades múltiplas’, a abertura do sistema de educação e, em particular, do ensino superior, reduz a seletividade da entrada e dilui as distinções ao longo do percurso escolar. O mérito ou demérito nesta trajetória recai sobre o indivíduo, que teria sido capaz/incapaz de aproveitar as oportunidades que lhe foram oferecidas. O mais grave, no entanto, é a impossibilidade de entender o sucesso ou o fracasso como parte de um processo que é social, além de psicológico. Sucesso e fracasso são valores sociais construídos e explicáveis pela análise científica da sociedade. E, também da personalidade, claro. Quando negamos a ciência, substituindo-a pelo “lugar de fala” ou pela expressão da MINHA ESPECIFICIDADE, perdemos qualquer condição de analisar objetivamente trajetórias sociais. Que são sociais justamente por serem regulares, se repetirem sistematicamente entre pessoas com posições sociais similares. Só nos resta a sensação de ser um gênio, um incompreendido, um fracassado. E baldes de ressentimento.


A pandemia produziu um quadro de horrores que julgávamos ser medieval, ultrapassado pela evolução científica e tecnológica. Ao mesmo tempo, mostrou que a única esperança é a ciência e sua capacidade de produzir vacinas, controlar o vírus. Da mesma forma, a pandemia nos isolou e confinou. Ainda assim, viu brotar a solidariedade entre vizinhos, as dezenas de formas de ajuda às pessoas em situações precárias, movimentos associativos para proteção contra a calamidade. As instituições de ensino superior participaram ativamente e estão contribuindo na construção de novas formas de relação com o conhecimento, de ensino e aprendizagem, de convivência entre desiguais. Começando pelas políticas de permanência feitas segundo as disponibilidades econômicas e de pessoal, passando pelo desenvolvimento de metodologias didáticas mais modernas e aperfeiçoadas, e chegando à assistência psicológica e social dos estudantes, docentes e funcionários.


Talvez possamos ver nestas ações institucionais uma lanterna que nos indica o caminho para buscar formas de vida social mais justas, mais iguais, mais sustentáveis. Talvez, parafraseando Dubet, a universidade ajude a superar as paixões tristes e a construir responsavelmente os espaços de esperança.


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