Glicia S. Gripp
Universidade Federal de Ouro Preto
Não há consenso sobre a aprovação do Homeschooling ou ensino domiciliar no Brasil: várias organizações da sociedade civil, instituições acadêmicas e muitos pesquisadores da área se pronunciaram contrários ao Projeto de Lei 3179/2012¹, como está explícito no “Manifesto contra a regulamentação da educação domiciliar e em defesa do investimento nas escolas públicas”, de 17 de maio de 2022, divulgado na imprensa e pela Anped – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação. São vários os motivos elencados no Manifesto, entre eles o ataque aos direitos das crianças e adolescentes, a desconsideração de realidades pedagógicas e sociais, a distorção da função da escola em uma sociedade democrática. Assim, o objetivo deste texto é fazer uma crítica à aprovação da educação familiar a partir de uma breve análise do ponto de vista da sociologia da educação.
O que é educação para a sociologia da educação? Durkheim, em uma investigação utilizando o método comparativo-histórico, aponta que a educação é a ação exercida pelos adultos sobre as crianças e jovens para desenvolver determinado número de estados intelectuais, morais e físicos considerados ideais pela sociedade, em geral, e, em particular pelo meio social onde a criança vive (Durkheim, 1978: 41). Assim, não há uma educação ideal, perfeita, universal, e apropriada a todas as crianças, pois ela variou ao longo do tempo e do espaço. A educação está intimamente relacionada às outras instituições sociais. Ou seja, educação é uma socialização metódica, tem um caráter social, seu objetivo é construir o ser social em cada um dos indivíduos. A educação satisfaz as necessidades sociais.
Durkheim afirma que o “homem só é humano porque vive em sociedade”. O filósofo espanhol contemporâneo Fernando Savater fez uma afirmação semelhante: os homens nascem com potencial de se humanizar, mas é a educação que os tornam humanos. O fundamento da educação, para Savater, é o fato de que a humanidade nos é dada pelos outros e nós a damos aos outros:
“Ninguém se faz humano sozinho. Só o contato, o contágio de outros seres humanos, nos faz humanos. Enfim... temos de contagiar-nos da humanidade dos outros. Daí que a mim me pareça que é muito mais importante o estar numa classe, numa aula rodeado de seres humanos e frente a seres humanos e frente a um professor – embora seja humano à distância, como neste caso–, porque eu creio que essa proximidade é o essencial da educação”. (Savater, 2006).
Durkheim enfatiza, dentro de sua definição de educação, a sua função de integração moral – o sistema de representação da ideia e do sentimento da lei, da disciplina interna e externa, da obrigação de considerar outros interesses que não os nossos, o domínio das paixões e dos instintos etc. Enfatiza, também, a função de integração cultural e intelectual – as noções de causa, de lei, de espaço, de número; noções de corpo, de vida, de consciência, de sociedade etc.: “Não concebemos hoje o homem, a natureza, as coisas, o espaço mesmo como os homens da Idade Média os concebiam” (Durkheim, 1978:45).
Essa função, própria da escola, de integração cultural ou lógica é tratada também por Bourdieu (1992). A escola propicia aos estudantes um corpo comum de categorias de pensamento que torna possível a vida em sociedade, a comunicação entre os indivíduos. As instituições escolares assumem, nas sociedades contemporâneas ocidentais, uma importante função de integração lógica, um programa de percepção, de pensamento e de ação. Não se trata de conteúdos, mas de categorias de entendimento. A cultura, compreendida como um código comum é o que permite a todos aqueles que possuem esse código associar o mesmo sentido às palavras, aos mesmos comportamentos e às mesmas obras e exprimir a mesma intenção significante pelas mesmas palavras, dos mesmos comportamentos e das mesmas obras. Isso explicaria, segundo Bourdieu, por que a escola, que é a instituição social que transmite essa cultura (que é mais ampla do que a existente em qualquer família específica, em determinado meio, com características determinadas) é o fator principal do consenso cultural, “nos termos de um senso comum entendido como condição de comunicação” (Bourdieu, 1992:207).
Essas breves notas já explicitam por si os possíveis problemas, tanto no nível individual quanto no nível coletivo, da adoção do Homeschooling.
De um lado, teríamos bolhas epistêmicas – estrutura social epistêmica, que pode difundir internamente quaisquer tipos de crenças e que elimina vozes relevantes externas – dentro de uma sociedade profundamente desigual, com racismo e aparofobia acentuados.
Por outro lado, as crianças estariam privadas da partilha desse senso comum que é condição de comunicação e privadas da aquisição de determinadas categorias de percepção e pensamento.
Durkheim alerta para esse último problema:
“Na verdade, porém, em cada sociedade, considerada em momento determinado de seu desenvolvimento, possui um sistema de educação que se impõe aos indivíduos, de modo geralmente irresistível. É uma ilusão acreditar que podemos educar nossos filhos como queremos. Há costumes com relação aos quais somos obrigados a nos conformar; se os desrespeitamos, muito gravemente, eles se vingarão em nossos filhos. Estes, uma vez adultos, não estarão em estado de viver no meio de seus contemporâneos, com os quais não encontrarão harmonia. Que eles tenham sido educados segundo ideias passadiças ou futuristas, não importa; num caso, como no outro, não serão de seu tempo e, por consequência, não estarão em condições de vida normal” (Durkheim, 1978: 36-37).
Nota
¹A Câmara dos Deputados aprovou, no dia 18 de maio de 2022, o texto principal de um projeto de lei – Projeto de Lei 3179/2012 - que regulamenta a educação domiciliar, o homeschooling. O projeto de lei precisa, ainda, ser avaliado e votado no Senado. O texto altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei no. 9.394, de 1996 - e o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069, de 13 de julho de 1990.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Sistemas de Ensino e Sistemas de Pensamento. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1978.
“Manifesto contra a regulamentação da educação domiciliar e em defesa do investimento nas escolas públicas”. Anped, 19 de maio de 2022.
Disponível em https://anped.org.br/, consultado em 26 de junho de 2022.
SAVATER, Fernando. Fabricar humanidade. Revista Prelac, no. 2, 2006.
Muito bom, Glícia! Excelentes argumentos para a crítica do HS. Parabéns.